sexta-feira, 12 de junho de 2009

Leishmaniose canina e a estupidez interministerial

Em julho de 2008, através da portaria interministerial 1.426/2008, o governo decretou a condenação de cães infectados com a leishmaniose visceral canina (LVC) à morte, proibindo seu tratamento com remédios humanos ou sem registro no Ministério da Agricultura. O ato da portaria não seria de todo mal se não fosse por um detalhe: simplesmente não existe ainda medicação veterinária contra a doença no Brasil no momento. Sem dúvidas podemos considerar isso um ato oficial de maldade e desprezo à vida animal por diversos motivos.

Analisando os documentos referentes a essa proibição, podemos entender por que essa atitude foi maldosa e atenta contra a vida de muitos cachorros, uma violação dos direitos animais à vida e à saúde.

A primeira questão é que, como já dito, simplesmente NÃO existem medicamentos de uso veterinário contra a LVC registrados no Brasil. Se o governo se importasse com a vida canina, teria adiado essa proibição até que pelo menos um ou dois medicamentos fossem registrados e disponibilizados na farmácia veterinária. Por que os ministérios da Saúde e da Agricultura não podiam esperar?

A espera não foi uma opção considerada por governantes especistas que só prezam pela vida humana e tratam a animal como um produto pecuário – aliás, o ministério que cuida da “assistência” veterinária chama-se Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, sendo uma mórbida ironia o fato de um ministério encarregado de coordenar justamente a exploração e matança de animais rurais ser designado para visar pela saúde de todos os animais domésticos do país!

Aliás, morte é a única linguagem que entendem! No Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral do Ministério da Saúde, o animal doente é desprezivelmente chamado de “reservatório canino”, algo que não passa de um objeto transmissor de patologia, tal como um balde de água parada, e deve ser erradicado. O único “tratamento” enxergado pelo ministério é o assassinato, eufemizado como “eutanásia”, para “todos (sic) os animais sororreagentes e/ou parasitológicos positivos”. Que “ética” estúpida é essa de desprezar vidas?

Na portaria, “justificativas” são dadas para fundamentar algo que não tem fundamento, algo que, na prática, é a proibição total das formas atuais de tratamento da LVC em cachorros. Importa comentar cada ponto:

“(...) não há, até o momento, nenhum fármaco ou esquema terapêutico que garanta a eficácia do tratamento canino, bem como a redução do risco de transmissão;”

Gostaríamos muito de saber como foi feita a pesquisa que chegou a essa conclusão. Os outros países, aliás TODOS os outros países devem estar de brincadeira ou fazendo saravá para criarem medicamentos e rações que funcionam...Só aqui que não!

“(...) a existência de risco de cães em tratamento manterem-se como reservatórios e fonte de infecção para o vetor e que não há evidências científicas da redução ou interrupção da transmissão;”

O fato de a LVC ainda não ter uma cura não é motivo para proibir seus portadores de viver e receber um tratamento que ao menos alivie os sintomas e a carga de infecção. O comportamento assassino de negar tratamento com os recursos existentes e recomendar que se matem os bichos infectados equivale a ser aconselhado o extermínio de todos os humanos portadores de doenças graves como Ebola e gripe aviária simplesmente porque essas enfermidades ainda não têm cura e são muito sérias. É vergonhoso saber que, se mandassem matar humanos doentes, seria um escândalo mundial, mas, como são “apenas” animais não-humanos, é muito normal que sejam assassinados para se proteger estritamente a espécie humana.

Para evitar uma polêmica que objetasse que “os mosquitos deveriam ser poupados também então”, vale, ao menos na limitada realidade atual, observar que esses animais são minúsculos e dispersos demais nos ambientes naturais e antrópicos para receber tratamento de erradicação da infecção e são espécies invasoras do ambiente urbano, com as quais uma coexistência harmoniosa com animais humanos e domésticos se faz praticamente impossível. Cães e gatos, em contrapartida, não se caracterizam como espécies invasoras e possuem um corpo grande o suficiente para receber tratamento veterinário adequado.

“(...) a existência de risco de indução a seleção de cepas resistentes aos medicamentos disponíveis para o tratamento das leishmanioses em seres humanos;”

O risco de supermicrorganismos se desenvolverem é muito comum em tratamentos com antibióticos. Deveríamos, afinal, matar um portador de tuberculose cujos microrganismos infectantes tivessem adquirido resistência a medicamentos?

“(...) não existem medidas de eficácia comprovada que garantam a não-infectividade do cão em tratamento (...)”

Vide comentários do primeiro e segundo trechos.

Sobre a determinação, é questionável essa “eficiência” em, na prática, proibir que animais tenham direito a tratamento enquanto carecem de atenção questões como as campanhas de conscientização contra drogas – incluindo álcool e cigarros – e DSTs e a situação penuriosa dos hospitais do SUS.

Quanto às punições para quem desafiar a atitude de negar as únicas opções existentes de tratamento da LVC, são invocados, entre variada legislação punitiva, o Artigo 268 do Código Penal e o Código de Ética do Médico Veterinário.

A invocação do primeiro, que pune quem “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, é uma ironia. Não sabem que um dos objetivos do tratamento de uma doença é justamente reduzir, ainda que nem sempre a zero, a infecção e os riscos de contágio? Novamente questiono de se, uma vez que doenças como AIDS, gripe aviária e Ebola ainda são incuráveis, seria uma opção “válida” assassinar seus portadores para evitar sua propagação.

Quanto ao Código de Ética, é importante denunciar aqui que a portaria está o contradizendo, se não o infringindo. O Artigo 2º do mesmo proíbe o veterinário de, entre outras atitudes, “deixar de utilizar todos os conhecimentos técnicos ou científicos a seu alcance contra o sofrimento do animal”. Uma vez que todos os conhecimentos técnicos daquele que trata a LVC estão restritos justamente aos remédios importados, nenhum dos quais é atualmente licenciado no Ministério da Agricultura, e medicamentos de uso humano, a portaria está na prática mandando que o veterinário negue o tratamento ao cachorro e seja omisso para com o seu sofrimento.

Partindo para a Nota Técnica nº 023, que procurou esclarecer os questionamentos relativos a essa portaria interministerial, chama a atenção esse trecho:

“Até o momento os produtos que vêm sendo utilizados no tratamento da LVC são de uso exclusivo em humanos. Todo produto destinado ao uso em animais deve ser registrado no MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento] e ter sua eficácia, segurança e estabilidade avaliados, antes de serem comercializados. Um produto sem registro no órgão de competência não assegura a análise da sua eficácia e segurança para a espécie a que se destina.”

Esse parágrafo na prática confessa que ainda não existe tratamento veterinário para a LVC licenciado. Outro parágrafo que merece comentário afirma que:

“A proibição de tratamento da LVC de que trata a Portaria Interministerial [...] não impede o tratamento da doença com produtos que venham a ser registrados no MAPA, nem impede a utilização de vacinas na prevenção, apenas ratifica a proibição de produtos sem registro, prevista desde a publicação do Decreto-lei nº 467/69”.

Três perguntas são necessárias nessa parte: Por que essa portaria não foi criada logo depois, se a ideia era proibir logo o uso de medicamentos sem controle oficial? Por que não se incentivou, em todos esses anos, a pesquisa de medicamentos nacionais de uso animal para a LVC? Por que os dois ministérios (Saúde e Agricultura) não esperaram o licenciamento de pelo menos um ou dois medicamentos veterinários dirigidos a essa doença e, ao invés, preferiram na prática proibir todas as formas de tratamento atualmente vigentes?

Vale também observar que os ministérios deixaram de levar em consideração que nem todos os cães contam com acesso fácil à vacinação contra a LVC, ora pela localização remota de certas áreas endêmicas ou suscetíveis à transmissão da enfermidade, ora pela irresponsabilidade, ignorância e até maldade de muitos tutores que recusam vacina a seus cães – os quais não têm culpa de terem criminosos como tutores. Esses problemas, que são as verdadeiras causas da persistência da doença no Brasil, nenhuma política de extermínio irá deter.

Novamente percebemos que a posição governamental em relação à vida dos animais não-humanos é de desprezo ao seu direito de viver e inferiorização do mesmo em comparação ao direito humano a uma vida saudável e digna. É necessário pensar, neste momento, em como impedir que o governo continue aconselhando que cães infectados sejam assassinados e convencê-lo de que sua posição não é ética, assim como procurar apoio de laboratórios farmacêuticos estrangeiros que estejam dispostos a ajudar os cães brasileiros cujo tratamento os ministérios estão tentando proibir – repito: mesmo que não tenha havido a intenção de deliberadamente entregá-los à morte, foi isso o que a portaria 1.426/2008 fez na prática, pelos motivos já apontados.

Referências:
Portaria interministerial MS/MAPA 1.426/2008: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/pri1426_11_07_2008.html
Nota técnica nº 023 do Ministério da Agricultura:
http://www.agricultura.gov.br/pls/portal/docs/PAGE/MAPA/SERVICOS/CPV_NOVO/COM_INSTR_TEC_CPV/LEISHMANIOSE%20CANINA_0.PDF
Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral:
http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/manual_leish_visceral2006.pdf
Código de Ética do Médico Veterinário: http://buenoecostanze.adv.br/index.php?option=com_content&task=view&id=166&Itemid=38

Fonte: Consciência Efervescente

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