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Segue trechos de um artigo publicado na Revista Eletrônica Scielo que aborda o modelo de controle da leishmaniose no Brasil e a ineficácia da eutanásia de cães.
Mudanças no controle da leishmaniose visceral no Brasil
Depois de duas décadas de tentativas de controle da leishmaniose visceral (LV) no Brasil, o número de casos no país aumentou nitidamente e invadiu áreas urbanas, onde encontrou-se com a AIDS27. A recente proposta do Ministério da Saúde de reavaliar os programas de controle de endemias, aliada ao reconhecimento da pouca eficiência do programa brasileiro para LV, levou à convocação de um comitê de consultores para analisar o programa atual e propor mudanças para o controle da doença no país. Foram realizadas algumas reuniões do grupo técnico, a última tendo ocorrido em 4 de dezembro de 2000 em Brasília. Esta reunião contou com a presença dos consultores da Ministerio da Saúde e Técnico da Fundação Nacional de Saúde: Almério de Castro Gomes (Universidade de São Paulo), Carlos Henrique Nery Costa ( Universidade Federal do Piauí), Jackson Mauricio Lopes Costa (Universidade Federal do Maranhão), João Batista Furtado Vieira (Fundação Nacional de Saúde), José Wellington de Oliveira Lima (Fundação Nacional de Saúde) e Reinaldo Dietze (Universidade Federal do Espírito Santo). Em fevereiro de 2001, as modificações propostas foram apresentadas para os representantes das secretarias estaduais de saúde e das coordenações regionais da Fundação Nacional de Saúde, para implementação.
O programa brasileiro, iniciado há mais de 40 anos, é composto pela integração de três medidas de saúde pública: a distribuição gratuita do tratamento específico, o controle de reservatórios domésticos e o controle de vetores. A medicação distribuída nas unidades públicas de saúde onde se trata LV são compostos de antimônio pentavalente, com dose recomendada de 20mg/kg/dia por no mínimo 20 dias. O controle de reservatórios tem sido feito através do diagnóstico sorológico de todos os cães domésticos onde existe transmissão de Leishmania chagasi para seres humanos. Para isto, foi estruturada uma rede de testes de imunofluorescência, utilizando-se eluato de papel de filtro; todos os cães com resultado reagente têm sido sacrificados. Finalmente, o controle do vetor, essencialmente para o flebótomo Lutzomyia longipalpis, é aplicado eventualmente com o uso de inseticidas, por aspersão espacial (principalmente) ou por aplicação residual.
A recente epidemia devastadora do Sudão, onde populações deslocadas pela guerra civil tinham pouco acesso à medicação para LV , deixou claro que a ampla distribuição gratuita do tratamento específico é crucial para a prevenção da morte, particularmente entre os mais pobres, contingente que constitui a maioria das vítimas de LV.
Salvo pequenas modificações, decorrentes de análises e experiências recentes, as recomendações anteriores para o tratamento específico foram ratificadas pelo comitê de consultores. Baseado em revisão dos esquemas utilizados até o presente, sugeriu-se passar a duração mínima de 20 dias para 30 dias. A excreção quase totalmente renal do antimônio pentavalente e ausência de tabela para uso em pacientes com insuficiência renal, a conhecida eliminação extra-renal da anfotericina B e o fato de seus níveis séricos não serem afetados na insuficiência renal (e apesar de sua nefrotoxicidade) levaram à indicação do uso, ainda que cauteloso, de anfotericina B como droga de escolha para pacientes com LV em insuficiência renal. A segurança do uso de anfotericina B na gestação e a falta de estudos conclusivos sobre a teratogenicidade de antimônio, levaram à recomendação de indicação de anfotericina B na gestação. Foram consideradas medidas de segurança a dosagem de creatinina do soro antes do início do tratamento e o acompanhamento eletrocardiográfico de pessoas mais velhas ou com cardiopatias.
O programa de eliminação de cães domésticos apresenta o menor suporte técnico-científico entre as 3 estratégias do programa de controle. Foram identificados 10 pontos de maior fragilidade:
1) A falta de correlação espacial entre a incidência cumulativa de LV humana com a soroprevalência canina.
2) A ausência de risco significativo de coabitação com cães para aquisição de LV .
3) A demonstração teórica de que é um método pouco eficiente em comparação com as estratégias de controle vetorial e de suplementação alimentar.
4) A demonstração de que outros reservatórios podem ser fontes de infecção de L. chagasi, tais como pessoas (particularmente crianças desnutridas que podem transmitir para outras crianças), canídeos silvestres e marsupiais.
5) A grande velocidade com que a população canina é reposta, exigindo proporção e freqüência de retiradas de cães soropositivos impraticáveis.
6) A baixa eficiência dos testes sorológicos em detectar infecção canina.
7) A utilização de um único método para efetuar as duas funções de teste de triagem e de teste confirmatório para infecção por L. chagasi; isto conduz a elevado custo por benefício devido à alta proporção de resultados falso-positivos, particularmente quando a prevalência real é baixa.
8) A falta de indicadores clínicos ou laboratoriais de infectividade de cães para o vetor.
9) A ausência de experiências anteriores que tenham demonstrado vantagens exclusivas da eliminação de cães, pois todos os relatos de sucesso de programas de controle de LV onde foram eliminados cães descrevem também o controle de vetores com inseticidas.
10) A publicação de observações e ensaios em que se verificou que quando esta medida foi aplicada sozinha, não houve demonstração inequívoca da vantagem de seu uso em reduzir a incidência de LV em seres humanos.
Os consultores recomendaram então que a triagem sorológica universal sistemática de todos os cães seguida de eliminação deve ser suspensa. Sugeriram que, na ausência do vetor ou de casos humanos, as únicas medidas para as áreas com leishmaniose visceral canina devem ser de vigilância e de educação em saúde. (...)
Fundamentado em numerosos relatos e ensaios de bons resultados no controle de LV onde houve aplicação de inseticidas para o controle de LV, antroponótico ou não, ou de outras doenças transmitidas por vetores, tais como malária e doença de Chagas, os consultores enfatizaram que a prioridade do programa de controle da transmissão deve ser dada para o controle de vetores, em vez da atual ênfase conferida ao controle de reservatórios. O comitê sugeriu a distinção entre as circunstâncias em que o uso de inseticidas está formalmente indicado das situações em que medidas mais conservadoras devem ser tomadas. (...)
O comitê de assessores reconheceu que muitos pontos da epidemiologia e profilaxia da LV não estão ainda devidamente esclarecidos, o que dificultou a escolha das melhores recomendações. Por isto, sugere que o Ministério da Saúde e agências oficiais de fomento à pesquisa devam encomendar pesquisas à comunidade científica sobre a epidemiologia e o controle da LV. Chama especial atenção para tópicos relevantes tais como: quais são de fato as principais fontes de L. chagasi para populações humanas; testes diagnósticos que identifiquem a infectividade de cães para Lu. longipalpis; e a análise de estratégias para o uso de inseticidas mais efetivas e menos danosas.
O comitê entende que existem recomendações com alguma imprecisão, mas acredita que possam ser mais adequadamente especificadas através de decisões tomadas localmente, de acordo com as peculiaridades regionais. Finalmente, o comitê acredita que as modificações propostas resultarão em aplicação mais racional e eficiente dos recursos destinados ao controle desta endemia.
Carlos Henrique Nery Costa1 e João Batista Furtado Vieira 2
1. Hospital de Doenças Infecto-Contagiosas e Universidade Federal do Piauí. Teresina, PI. 2. Fundação Nacional de Saúde, Ministério da Saúde, Brasília, DF
Endereço para correspondência: Dr. Carlos Henrique Nery Costa. Laboratório de Leishmanioses/Hospital de Doenças Infecto-Contagiosas. R. Gov. Artur de Vasconcelos 151-Sul, 64000-450 Teresina, PI, Brasil.
Tel: 55 86 221-3413 Fax: 55 86 221-2424
rsbmt_fmtm@mednet.com.br
e-mail: crlshncst@aol.com
Recebido em 23/2/2001
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