quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Eutanásia e Leishmaniose canina não são sinônimos

Eutanásia X Matança

Adotar uma linguagem que reconhece animais como indivíduos, e não como propriedade, ensina às pessoas que animais não são meros objetos para serem usados em benefício dos humanos." Diz Elliot Katz, Presidente da entidade "In Defense of Animais", Califórnia, EUA, afirmando que a mudança de terminologia é parte de uma "revolução" que mudará a maneira como as pessoas vêem seus cães, gatos e outros animais de estimação. Katz considera a palavra "dono" ofensiva, reportando-nos aos tempos da escravidão. Donos compram; guardiães adotam de abrigos, resgatam animais das ruas.
Mas qual a importância de se usar uma ou outra palavra?

A linguagem é uma ferramenta poderosa e a utilização de certas palavras pode nos conduzir à aceitação, ou não, de uma ideologia. O mesmo acontece com o mau uso da palavra "eutanásia" por muitos profissionais da Medicina Veterinária e órgãos públicos, especialmente os CCZ´s, abalizando a equivocada e criminosa política de saúde pública ainda praticada no Brasil, que segue as arcaicas recomendações do 6° Informe Técnico daOMS, datado de 1973, em desuso em maior parte do mundo, consistindo no recolhimento e matança de cães errantes.

Devemos salientar que as associações de proteção aos animais não são contra a eutanásia, pois este termo significa, segundo o "Dicionário Aurélio", morte serena, sem sofrimento; prática, sem amparo legal, pela qual se busca abreviar, sem dor ou sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável. As associações de proteção aos animais são totalmente contrárias à matança.

A Resolução n° 714, de 20 de junho de 2002, do Conselho Federal de Medicina Veterinária, em seu Art. 2°, segunda parte, reza que "... ou, ainda, quando o animal constituir ameaça à saúde pública ou animal, ou for objeto de ensino ou pesquisa."

Se a idéia aí contida é atender aos animais que, por suas enfermidades infecto-contagiosas estiverem com suas próprias vidas comprometidas, sofrendo muito e, ainda, constituindo ameaça à saúde pública ou animal, de forma comprovada, e não presumida, certamente será praticada a eutanásia. Podemos citar a raiva como exemplo. Caso contrário, será matança indiscriminada em nome de uma mal versada política administrativa de saúde pública.

A interferência do Homem no Meio Ambiente (desmatamento, acúmulo de lixo, circulação de animais, etc) fez aparecer em zonas urbanas doenças como leishmaniose, leptospirose e outras consideradas de zona rural. No caso da leishmaniose, como prevenção, quem deveria ser eliminado é o mosquito (vetor), não o cão (hospedeiro), tão vítima quanto o homem. Entretanto, após infectado, recomenda-se a sua eliminação, haja vista o tratamento ser deveras oneroso e por não se ter garantia total de cura. Porém devemos ter o devido cuidado para que o cão não se torne o "bode expiatório" pelas mazelas da citada má administração humana, pois quando os detentores do poder se deparam com essas doenças, começam a combatê-las matando cães e gatos, esquecendo-se que estes são vítimas das ações depredatórias do Homem e que também sofrem com a doença.

É fácil matar animais indefesos. É fácil transferir nossa culpa pela incapacidade de resolver problemas tão básicos. A partir do momento em que o Homem domesticou o cão e o gato, tornou-se responsável por alimentá-lo, supervisioná-lo e, inclusive, interferir em sua capacidade reprodutiva através da esterilização, evitando, assim, a superpopulação e a disseminação de doenças. Referente ainda à Resolução n° 714, quanto aos animais objetos de ensino ou pesquisa, só é permitida a utilização em experiência dolorosa ou cruel em animal vivo quando não houver alternativas para tal, sob pena de infringir o disposto no Art. 32, § 1° da Lei n° 9.605/98.

E a sentença de morte decretada para este animal não deve ser interpretada como eutanásia e, sim, como sacrifício por uma causa, porque, para obter os resultados desejados para um processo de ensino ou pesquisa, a saúde física do animal é altamente danificada, alterando sua qualidade de vida, tornando-se, pois, um quesito necessário.

Igualmente irônico seria o caso de utilizarmos a palavra eutanásia em frigoríficos, haja vista a necessidade do abate do animal para o consumo humano ou, então, como a publicada na Revista Metrópole, ano IV, n° 50, de maio/2003, pág. 54, onde uma médica-veterinária doCCZ de Campo Grande assim explica: "Diz-se eutanásia e não sacrifício, porque aplicamos uma anestesia geral, é uma morte sem dor" na tentativa de justificar a matança em nome do controle e da erradicação da leishmaniose.

Segundo o Art. 3° do Decreto Federal n° 24.645/34, deve-se dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não. E conforme o Artigo 13 do mesmo Decreto, é crime eliminar um animal sem provar que foi por ele acometido ou que se trata de animal feroz ou atacado de moléstia perigosa.

Isso quer dizer, portanto, que a terminologia "eutanásia" só é admissível quando comprovada sua necessidade e o animal em questão não mais apresentar condições de continuar vivo por ser um doente reconhecidamente incurável e não simplesmente porque é uma morte indolor e, como agravante, praticada substituindo ações efetivas para a preservação da saúde pública.

Vale dizer aqui que "ninguém pode ser mais real que o rei". Se a idéia é recolher e matar os animais saudáveis só porque foram capturados soltos em vias públicas ou entregues por seus irresponsáveis proprietários, certamente não estará praticando eutanásia. Estarão realizando, pois, uma matança indiscriminada. Vale recordar que abandono de animais e falta de assistência médico-veterinária são crimes segundo o Artigo 3° do Decreto Federal n° 24.645/34.

Eutanásia é uma coisa, matança é outra bem diferente. Isto é de uma "clareza de doer os olhos".

Está havendo a consolidação do entendimento de que os animais devem ser protegidos a despeito do nascimento de movimentos pró-meio ambiente, principalmente nas últimas décadas do século passado. Essa tomada de consciência permitiu, no campo da Ciência do Direito, o surgimento de uma legislação específica, no sentido de coibir maus-tratos aos animais. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da UNESCO, celebrada na Bélgica em 1978, e subscrita pelo Brasil, é um exemplo, a qual elenca entre os direitos dos animais o de "não ser submetido a sofrimentos físicos ou comportamentos antinaturais".

Nesse sentido, a Humanidade tem se sensibilizado contra ações que importem em maus-tratos e crueldade contra os animais, procurando, em diversas partes do mundo, promulgar e implementar normas que garantam o respeito à vida, ao bem-estar e à dignidade destes seres vivos, com a proibição de atos que impinjam aos animais desnecessários sofrimentos.

Movimentos, campanhas e até ações judiciais com a ampla repercussão da temática ambiental na mídia como um todo e o trabalho de educação ambiental promovido por diversas entidades ambientalistas, políticas e jurídicas, dentre elas o Ministério Público, acompanharam essa conscientização ambiental. No entanto, o problema dos maus-tratos contra os animais persiste e, mais, em nosso país, tal violência se encontra institucionalizada, haja vista a política de saúde ultrapassada e não humanitária amplamente adotada pelo Poder Público para conter a população de animais errantes, através de matança sistemática e indiscriminada, condenada pela própria OMS em seu Informe Técnico n° 8, datado de 1992 . Política pública esta cruel e que não se mostra eficaz sequer ao seu motivo justificador que seria o de controlar as zoonoses.

Os órgãos responsáveis pelo controle de zoonoses deveriam fiscalizar e garantir a saúde e o bem-estar dos animais e estimular a fiel aplicação dos preceitos constitucionais e legais que preconizam a guarda responsável destes seres vivos por seus proprietários, contudo, são os primeiros a violarem a norma legal e a darem maus exemplos, estimulando a impunidade e a barbárie, ao pôr em prática, em relação aos animais que captura, mantém em confinamento e mata, procedimentos e atitudes que afrontam diversos diplomas normativos, a Constituição da República e a legislação infraconstitucional além das recentes recomendações técnicas da OMS.

Assim, essas atrocidades cometidas contra os animais, dotadas de notável selvageria humana, incidem em norma penal incriminadora, pelo que devem responder os infratores a título de dolo assim como deverá estar o Poder Público, por suas entidades, órgãos e agentes, cumprindo o princípio constitucional inserido através da Emenda Constitucional 19, de 04 de junho de 1998. Com efeito, lê-se no caput do artigo 37: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)".

É também, nesse contexto, que a sociedade questiona, em nome do direito à vida e ao bem-estar animal e em favor da decência humana e do respeito entre todas as espécies, a razão da matança sistemática e indiscriminada de cães e gatos errantes nos CCZ´s e sua real eficácia em relação ao controle das zoonoses, e qual deve ser o papel desempenhado pelo Ministério Público nessa conjuntura.

Haja vista a necessidade de se esclarecer as situações de efetiva aplicação de eutanásia, recomendamos ao Conselho Federal de Medicina Veterinária alterar a redação do citado artigo da Resolução em pauta, considerando que a mesma vem sendo utilizada como amparo legal para dúbias interpretações.

Que os médicos veterinários, por ética e por formação profissional, cumpram com o verdadeiro papel de "defensores dos animais" e que a palavra EUTANÁSIA não seja mais utilizada quando se pretende, na verdade, mascarar atos de crueldade cometidos contra os animais que, como os homens, são criaturas de Deus.

"Chegará o dia em que os homens conhecerão o íntimo dos animais e, nesse dia, um crime contra qualquer um deles será considerado um crime contra a humanidade."
Leonardo da Vinci

Material consultado:
Lei n° 9.605/98
Decreto n° 24.645/34
Resolução n° 714/CFMV
Princípios Éticos na Experimentação Animal
Textos de Maria Luiza Nunes
Marlene Nascimento
Vanice T. Orlandi
Luciano Rocha Santana
Marcone Rodrigues Marques

Maria Lúcia Costa Metello é Médica Veterinária e Advogada, Presidente da Sociedade de Proteção e Bem-Estar Animal "Abrigo dos Bichos" e Conselho Fiscal Efetivo da Sociedade Brasileira de Medicina Veterinária.

Fonte: APASCS

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