A malvada da Leishmaniose
Pouco mais de sete décadas depois de ter sido descrito pelo médico Evandro Chagas em um artigo na Science como o causador de uma nova forma de leishmaniose visceral, distinta da observada na Europa e na Índia, o parasita Leishmania chagasi e o inseto que o transmite aos seres humanos no Brasil continuam a desafiar pesquisadores e autoridades públicas da saúde. Nesse período a população brasileira, que até o início do século passado era eminentemente rural, tornou-se urbana – hoje oito de cada dez brasileiros vivem na cidade – e migrou de uma região a outra atrás de trabalho. Para que as cidades surgissem foram consumidas 30% das matas do país, ambiente natural do parasita da leishmaniose, encontrado em animais como o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous) e a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus), e de seu transmissor, o inseto Lutzomyia longipalpis. Analisando a dispersão da leishmaniose visceral, a epidemiologista Vera Lucia Camargo Neves, pesquisadora do CVE, constatou que a cada ano o parasita migra 30 quilômetros em direção a São Paulo, transportado por um inseto de apenas três milímetros e pernas e asas peludas: o Lutzomyia longipalpis, conhecido como mosquito-palha, birigüi, cangalha ou tatuquira.
As três principais medidas de controle adotadas há meio século – uso de inseticidas, eliminação de cães doentes ou suspeitos de estarem infectados e tratamento dos casos humanos – não têm se mostrado capazes de conter a expansão da doença. O pesquisador Costa, da UFPI, diz que a leishmaniose visceral mata cerca de 200 pessoas por ano, mais do que a malária e a dengue juntas, e é mais difícil controlá-la do que se havia pensado.
O parasitologista inglês Jeffrey Jon Shaw, que há 43 anos mora no Brasil e estuda o ciclo de vida dos protozoários do gênero Leishmania e de seus transmissores, acredita que o inseto transmissor da leishmaniose visceral se adaptou muito bem às cidades. “Estamos criando ambientes propícios à proliferação do vetor, como umidade e muita comida”, afirma Shaw, professor aposentado da USP e hoje pesquisador da Fundação Tropical de Pesquisas e Tecnologia André Tosello, em Campinas.
Ainda não é possível identificar um padrão de disseminação para todas as áreas do país. Não se sabe se as populações de insetos que hoje estão na periferia de muitas cidades já existiam nessas áreas ou se migraram de regiões com vegetação mais bem preservada. Shaw acredita em ambas as possibilidades. “Em Belo Horizonte é quase certo que houve uma invasão de mosquitos na periferia, mas em outros estados pode ter ocorrido a expansão de populações que viviam nas matas que margeiam os rios”, comenta o parasitologista, que investiga a dinâmica das populações de Lutzomyiaem São Paulo, Mato Grosso do Sul e Pernambuco.
Costa, da UFPI, tem um palpite diferente. Para ele, a disseminação do inseto transmissor da doença está associada ao uso de árvores exóticas como as acácias, de folhas miúdas e flores amarelas, nos projetos de urbanização das cidades. Há motivos para a suspeita. Teresina havia sido arborizada com acácias na época da primeira epidemia, nos anos 1980. Nessa época outra epidemia arrasadora, que deixou 100 mil mortos no Sudão, afetou principalmente as famílias que moravam em bosques de acácias, possível fonte de néctar para os insetos. Também há indícios de que o néctar de certas plantas favoreça a proliferação dos parasitas no intestino dos insetos.
Ainda é preciso provar se de fato isso ocorre no Brasil, mas é certo que, com a redução das áreas de vegetação natural, os insetos se adaptaram aos parques e aos quintais de casas, comuns no interior.
Do ponto de vista da saúde pública, a saída é tentar controlar a população do mosquito-palha por meio da aplicação do inseticida deltametrina nos focos de leishmaniose. Mas nem sempre essa medida, hoje a cargo dos municípios, é eficaz. Com ação de três meses, o inseticida tem de ser aplicado parede por parede das casas e nem sempre os insetos morrem. Às vezes, só tombam no chão para mais tarde levantarem vôo novamente. “Não se conhece uma forma de aplicar o inseticida que atinja maior número de insetos”, conta Vera Camargo, do CVE.
A chegada do mosquito-palha às cidades foi acompanhada de um complicador. Com a sombra e a terra fresca dos quintais, o inseto encontrou uma formidável fonte de sangue que as pessoas gostam de manter ao seu lado: o cão, que contrai a infecção facilmente e se torna tão debilitado quanto seus donos.
Para controlar o avanço da leishmaniose, o Ministério da Saúde determina a eliminação dos cães infectados. É uma medida polêmica que, isolada, não é suficiente. Em vários estados a população de cães é alta – em São Paulo há um para cada quatro pessoas, enquanto a Organização Mundial da Saúde sugere que a relação ideal é de um para dez – e a taxa de infecção chega a 20% dos animais em alguns municípios. Há ainda a resistência dos donos a entregar o amigo fiel para o sacrifício. “As pessoas só dão os cães quando descobrem que alguém na vizinhança morreu com leishmaniose visceral”, conta a veterinária Maria Cecília Luvizotto, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araçatuba, que identificou o primeiro cão infectado em 1998.
Estudos feitos em diferentes cidades indicam que cerca da metade dos cães identificados com leishmaniose é eliminada. Veterinários e grupos protetores dos animais criticam a estratégia porque os testes diagnósticos podem falhar em algumas situações. “O teste não permite distinguir leishmaniose visceral de cutânea ou se o cão foi vacinado contra a doença”, diz a parasitologista Célia Gontijo, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte. “O teste ainda pode sugerir que o animal está com leishmaniose quando, na realidade, pode ter doenças curáveis, como a babesiose.”
Na tentativa de reduzir os enganos, Olindo Martins Filho e Renata Andrada, da Fiocruz mineira, desenvolveram um teste que permite diferenciar o resultado positivo provocado pela infecção do causado pela vacina, descrito em 2007 na Veterinary Imunology and Immunopathology. Atualmente eles tentam usá-lo para distinguir a forma visceral da cutânea. A própria Célia obteve resultados mais precisos que os de testes tradicionais, usando a técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR), que identifica o DNA do parasita.
Outros grupos testam o uso de coleiras com deltametrina, que manteriam os insetos longe dos cães por meses. A coleira custa cerca de R$ 60 e precisa ser trocada de tempos em tempos. Em 2004, Richard Reithinger, da Fiocruz em Minas, comparou o uso da coleira com a eutanásia. Mostrou que a coleira é uma alternativa viável, se as pessoas a usarem corretamente.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a equipe de Clarisa Palatnik de Sousa desenvolveu uma vacina com base em antígenos do parasita que vem sendo usada apenas em clínicas particulares. Em 2003 a vacina recebeu liberação do Ministério da Agricultura – o Ministério da Saúde, responsável pelo controle da leishmaniose, ainda não autorizou seu uso como medida de proteção em massa. A principal crítica à vacina era ter sido testada apenas em pequenos grupos de animais. A decisão das autoridades da saúde pode mudar agora com a publicação dos testes mais recentes na Vaccine de agosto. Clarisa acompanhou por dois anos dois grupos de cães (550 vacinados e 588 não-vacinados) em Andradina, cidade no interior de São Paulo onde a leishmaniose visceral é endêmica. A vacina protegeu os animais em 99% dos casos.
Após décadas sem novos compostos para tratar seres humanos, um estudo publicado na Plos Neglected Tropical Diseases mostra um avanço importante. Na USP, os parasitologistas Silvia Uliana e Danilo Miguel comprovaram que o tamoxifeno, usado na terapia e na prevenção do câncer de mama, é eficaz no combate à infecção por Leishmania amazonensis em camundongos. Agora eles se preparam para repetir os testes contra a Leishmania chagasi em hâmsters, antes de avaliar os efeitos em um pequeno número de pacientes. A vantagem do tamoxifeno sobre drogas novas é que seu mecanismo de ação já é conhecido e sua segurança já foi demonstrada. “Ainda assim”, afirma Silvia, “são necessários três anos de estudos”.
Entre os compostos em teste contra a leishmaniose, pelo menos um foi desenvolvido inteiramente no Brasil pela rede de pesquisas Farmabrasilis. É o P-MAPA, sigla de anidrido polimérico de fosfolinoleato de magnésio e amônio protéico, que em testes no Brasil e nos Estados Unidos mostrou ser eficaz contra a bactéria Listeria monocytoges, cujo mecanismo de sobrevivência no organismo é semelhante ao dos protozoários do gênero Leishmania.
Fonte:
Revista eletrônica FAPESP.
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